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25 de Abril de 2024

Lei que regulamenta guardas municipais é criticada por juristas

Publicado por Wagner Francesco ⚖
há 10 anos

Na última semana, o Plenário da Câmara aprovou o Projeto de Lei que garante poder de polícia às guardas municipais. Encaminhado para sanção, o projeto visa a criação do estatuto geral da categoria, prevendo direito a porte de arma e à estruturação em carreira única, com progressão funcional. A previsão também se estende à colaboração com os órgãos de segurança pública em ações conjuntas e “pacificação” de conflitos. Mediante convênio com órgãos de trânsito estadual ou municipal, também poderá fiscalizar o trânsito e expedir multas.

Para falar sobre o tema, o Justificando convidou os colunistas Salah H. Khaled Jr. Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e Mestre em História pela UFRGS e Thiago M. Minagé, Doutorando em Direito e Professor Visitante da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, para falarem sobre o tema.

Para Khaled Jr., apesar de concordar com o policiamento preventivo, apresenta ceticismo em qual polícia o projeto aposta

A questão é que espécie de policiamento? Com que diretrizes de atuação? Reiteração da lógica de confronto com o inimigo? Certamente não é o que se quer. Durante a Copa tivemos uma visibilidade policial sem precedentes. Normalmente vemos poucos policiais nas ruas. Essa visibilidade é desejada, desde que dentro de moldes democráticos. Nesse sentido parece haver algo de positivo na medida, já que sinaliza com ampliação dos espaços de atuação da segurança pública. Por outro lado, tenho sérias dúvidas quanto ao papel que a Guarda Municipal tem a desempenhar nesse sentido e, mais ainda, se ela efetivamente está preparada para se conformar a exigências democráticas de atuação. Não posso dizer que veja com otimismo a iniciativa. Não podemos descartar a hipótese de que sejam ainda mais ampliados os níveis de seletividade da ação policial.

Minagé classifica o projeto como um retrocesso:

Existe uma falsa percepção de que quanto mais policiais mais segurança. Do que adianta uma PM como a nossa totalmente despreparada e desestruturada? Isso é uma bomba prestes a explodir. Uma instituição policial precisa de preparo tanto quanto um judiciário, por exemplo. Observe: o agente policial é o primeiro a agir/atuar em nome do estado quando acionado. No concurso da PM sequer é cobrado o significado da palavra “flagrante”. Como assim!? O policial lidará diariamente com esse fenômeno e não sabe o que é. Será que existe algum ingênuo acreditando que será diferente com a GM? Trata-se de verdadeira municipalização da atuação policial, com a agravante de que toda GM e “comandada” por um ex-militar que acaba militarizando e assim perpetuando a militarização dos órgãos estatais repressores. Retrocesso total. Entendam, militar são as forças armadas e ponto. Se ao invés de criar uma nova agência criminalizante, porque não reestruturar ou melhor ressuscitar a policia já existente?

No que se refere à repressão, Minagé, por experiência própria, critica duramente a repressão que poderá surgir com o projeto:

Veja, sou carioca, e uma das cenas mais marcantes foi a violência, desrespeito, despreparo e atuação criminosa da GM em face do ambulantes. Quando via aquilo até na frente já entrei para que não agredissem as pessoas que estavam ali trabalhando e sempre dizia “ainda bem que não podem usar armas”. E agora? O porte de arma de uma pessoa despreparada aumenta sim a possibilidade da prática de um crime, muito me impressiona como uma farda e uma arma torna a pessoa autoritária e violenta.

Khaled Jr., por sua vez, trata o problema como cultural, o que torna a diretriz da atuação do guarda municipal preocupante

Penso que o problema da repressão é cultural. Existe uma cultura de permissibilidade do abuso. Essa cultura está introjetada em certa mentalidade policial que parte da premissa de que é aceitável “atirar primeiro e perguntar depois”. Nesse sentido, digamos que o porte de arma potencializa ainda mais os danos que essa atitude antidemocrática – muitas vezes aplaudida pela criminologia midiática – pode ocasionar. Existem outros modelos, em que os policiais andam desarmados e são próximos da comunidade. O trabalho é desenvolvido em parceria com a população e os policiais estão integrados ao convívio policial. Por isso disse anteriormente que as diretrizes de atuação me preocupam.

A proposta cria a forma de 3 polícias, isto é, a militar, polícia civil e, agora, a guarda militar. A tripartição torna o cenário de segurança pública caótico e preocupa os juristas.

Penso que precisamos redefinir o trabalho policial. Lentamente eliminar o componente militarizado e eventualmente reestruturar uma policia única, civil e cidadã com carreira, remuneração e condições de trabalho adequadas. Com o aprofundamento da cisão tudo indica que caminhamos na direção contrária. Definitivamente não me parece que é o caminho a seguir. Mas é apenas o meu ponto de vista e independentemente dele, o processo está em curso. Vamos torcer para que os resultados sejam positivos” - pondera Salah.

Em 2012, Juiz de Direito julgou o poder de polícia das guardas municipais como inconstitucionais

O debate jurídico em torno das guardas municipais ganhou força em 2012, quando Alexandre Morais da Rosa, Juiz e Colunista no Justificando, absolveu quatro pessoas pela prisão ter sido efetuada pela guarda municipal de Florianópolis.

Na decisão, argumentou que o Artigo 144 da Constituição Federal, que trata das polícias, é taxativo ao listá-las e, sendo assim, não há como a guarda municipal agir com poder de polícia, perseguindo o carro e revistando os acusados, como foi no caso.

Ou seja, em outras palavras, pela decisão, ainda que surja uma lei prevendo a criação do poder de polícia às guardas, tal projeto não poderia prosperar, uma vez que estaria em desacordo com a Constituição Federal.

Nesse sentido, vale a pena ler a decisão, copiada abaixo:

Vistos para sentença.

Com a vinda do auto de prisão em flagrante, foi determinada abertura de vista ao Ministério Público antes da análise do artigo 310 do CPP. Com vista dos autos, manifestou-se o Parquet pela legalidade do flagrante e pelo arbitramento de fiança para todos os conduzidos. Ofereceu denúncia. Trato, pois, de ação penal intentada pelo representante do Ministério Público em face de Ademilton Nilton dos Passos Junior, Carlos Eduardo de Souza, Evandro dos Santos de Oliveira e Rafael Henrique Dias de Oliveira, todos já qualificados nos autos, imputando-lhes a prática do crime de transporte ilegal de arma de fogo (art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei 10.826/03), e quanto a Carlos Eduardo de Souza, ainda, o cometimento do delito de desobediência (art. 330 do Código Penal), assim descritos na peça acusatória:

1º Fato – Desobediência

Na madrugada do dia 1º de junho de 2012, por volta da 0h30min, na Rua Silva Jardim, Centro, nesta Cidade, o denunciado CARLOS EDUARDO DE SOUZA desobedeceu ordem legal de parada solicitada pela Guarda Municipal de Florianópolis/SC, em razão de manobras bruscas na condução do veículo SEAT/CORDOBA, Placa MCF-8039, conforme Boletim de Ocorrência das fls. 34/35.

Ao agir, o denunciado, juntamente com as pessoas abaixo identificadas, ao perceber a aproximação da viatura da Guarda Municipal, empreendeu fuga, na condução do sobredito veículo, ocasião em que foi perseguido e, no local acima indicado, recebeu ordem legal de parada dada por um funcionário público, ou seja, um dos Guardas Municipais, à qual não obedeceu.

2º Fato – Transporte Ilegal de Arma de Fogo

Na madrugada do dia 1º de junho de 2012, por volta da 0h30min, na Rua Silva Jardim, Centro, nesta Cidade, os denunciados ADEMILTON NILTON DOS PASSOS JUNIOR, CARLOS EDUARDO DE SOUZA, EVANDRO DOS SANTOS DE OLIVEIRA e RAFAEL HENRIQUE DIAS DE OLIVEIRA, em comunhão de esforços e conjugação de vontades, transportavam, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar, dentro do veículo SEAT/CORDOBA, Placa MCF- 8039, arma de fogo de uso proibido e munições, consistentes em 1 (um) revólver marca Taurus, calibre.38, com a numeração suprimida/raspada e municiado com 6 (seis) cartuchos intactos, conforme o Termo de Exibição e Apreensão da fl. 21.

“Nesse contexto, os denunciado, previamente ajustados entre si, aderidos à conduta um do outro, ao receberem a ordem de parada proferida pela Guarda Municipal desta Cidade, jogaram pela janela do automóvel acima detalhado, onde todos estavam trafegando, a referida arma de fogo que transportavam ilegalmente. Ato contínuo, arrancaram bruscamente com o carro mas decidiram parar, cerca de 500 metros daquele local, onde a Viatura n. 106 da Guarda Municipal encontrou o artefato por eles dispensado, razão pela qual foram todos presos em flagrante delito.

Vieram os autos conclusos.

É o relatório.

Fundamento e decido.

Da análise do auto, não obstante já ter o Ministério Público oferecido denúncia e entendido pela legalidade da apreensão da materialidade de delito e do próprio flagrante efetuado, insta reconhecer que, nos termos do artigo 144, seus incisos e § 8º, da Constituição da República, o flagrante foi ilegal. Com efeito, não se desconhece a polêmica instaurada em torno do “rol” do mencionado artigo 144 – se taxativo ou não – a despeito de uma simples leitura conduzir à conclusão de que tal “rol” é, de fato, taxativo.

Recentemente, na ADIN n. 2.827-RS, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a taxatividade do rol disposto no artigo 144, sendo defesa aos Estados-membros a criação de órgão de segurança pública diverso daqueles previstos no mencionado.

A decisão restou assim ementada:

Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Emenda Constitucional nº 19, de 16 de julho de 1997, à Constituição do Estado do Rio Grande do Sul; expressão “do Instituto-Geral de Perícias” contida na Emenda Constitucional nº 18/1997, à Constituição do Estado do Rio Grande do Sul; e Lei Complementar nº 10.687/1996, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar nº 10.998/1997, ambas do Estado do Rio Grande do Sul 3. Criação do Instituto-Geral de Perícias e inserção do órgão no rol daqueles encarregados da segurança pública. 4. O requerente indicou os dispositivos sobre os quais versa a ação, bem como os fundamentos jurídicos do pedido. Preliminar de inépcia da inicial rejeitada. 5. Observância obrigatória, pelos Estados-membros, do disposto no art. 144 da Constituição da República. Precedentes. 6. Taxatividade do rol dos órgãos encarregados da segurança pública, contidos no art. 144 da Constituição da República. Precedentes. 7. Impossibilidade da criação, pelos Estados-membros, de órgão de segurança pública diverso daqueles previstos no art. 144 da Constituição. Precedentes. 8. Ao Instituto-Geral de Perícias, instituído pela norma impugnada, são incumbidas funções atinentes à segurança pública. 9. Violação do artigo 144 c/c o art. 25 da Constituição da República. 10. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente procedente.

Ora, se o rol do artigo 144 da CR é taxativo, não se pode tolerar a atuação da Guarda Municipal em exercício de polícia ostensiva (preventiva). No presente caso, os guardas municipais, ao visualizarem veículo com quatro integrantes, em situação na qual não havia existência flagrante de delito aparente – portanto, não se tratava de flagrante –, mas, na suspeita levantada, passaram a perseguir, em evidente abuso de autoridade, o veículo alvo da fiscalização, para depois realmente se certificarem de que havia crime. Depreende-se, claramente, atuação de prevenção da ordem pública, própria da Polícia Militar ou Civil. Dessarte, a Guarda Municipal não é um, nem outro. Sua função constitucional é guardar espaços públicos e não fazer ação típica de polícia, instituição que não é! Nesse sentido, a ordem de parada por parte da Guarda Municipal foi ilegal, pois, sem flagrante delito ocorrendo e ex ante, jamais poderia ter perseguido e mandado parar o veículo.

Interessante notar, a respeito da atuação do Ministério Público, que tal posicionamento também foi abraçado institucionalmente. Conforme salientado por Thiago Augusto Vieira, em monografia defendida na Universidade Federal de Santa Catarina, sobre o título o “Poder de Polícia e os Limites de Atribuições das Guardas Municipais” (Florianópolis, UFSC, 2010, p. 25), o Ministério Público de Santa Catarina, autor da ADIN n. 2008.145151-7, fundamentou o pedido de reconhecimento de inconstitucionalidade de Lei Municipal que permitia o policiamento ostensivo em relação à Guarda e a fiscalização do trânsito urbano e do meio ambiente, com força no entendimento de que o “rol” do artigo 144 da CR é taxativo. Assim o disse o Ministério Público, cujo excerto do pedido inicial foi transcrito no item 03.01 da decisão. Com efeito, tal é o caso dos autos, em que a atuação da Guarda Municipal foi ilegal, pois exerceu, em primeiro lugar, policiamento ostensivo e vigilância da ordem pública.

Nessa senda, a ineficiência do Estado na segurança pública não pode se sobrepujar ao Estado Democrático de Direito. Vive-se sob o império do Direito e a competência administrativa somente decorre de Lei. E, tal Lei tem a Constituição da República como baluarte. Ocorre que num Estado Democrático de Direito, os “fins” não podem justificar os “meios”. Não fosse isso, não haveria a proibição de utilização de provas ilícitas no ordenamento. Isso é dizer o óbvio, novamente. Portanto, não é possível tolerar inconstitucionalidades flagrantes, tais como a atuação da Guarda Municipal de Florianópolis com atribuição das Polícias. Sublinhe-se que quando houver flagrante se pode prender, como qualquer do povo. Não se pode é fazer “blitz”, mandar parar, fazer averiguações, porque tudo isso não lhes é autorizado pelo Direito!

Discutir tal alteração remete necessariamente à discussão sobre a delegabilidade ou não do Poder de Polícia. Para citar novamente Thiago Augusto Vieira, em monografia sobre o “Poder de polícia e os limites de atribuições das guardas municipais” (Florianópolis, UFSC, 2010, p. 25), extrai-se, oportunamente, a seguinte conclusão:

Diante do exposto, em resumo, pode-se dizer que maior parte das posições doutrinárias e jurisprudenciais continuam a assentar que o poder de polícia é indelegável, por ser poder típico do Estado. Todavia, registra-se entendimentos contrários a defenderem a delegabilidade do poder de polícia quando seu exercício encontra-se nas modalidades do poder de gestão, quais sejam, o consentimento e a fiscalização de polícia.

Nesse ponto, existe posicionamento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (HC n. 2009/0035533-0) entendendo que a Guarda Municipal, ao realizar polícia ostensiva (atribuição exclusiva da polícia militar, art. 144, § 5º, CR), atuaria no permissivo elencado no artigo 301 do Código de Processo Penal – “qualquer do povo poderá (…) prender qualquer que seja encontrado em flagrante delito.”. É de se registrar que tal entendimento, correto, inclusive, não encontra respaldo no caso em concreto.

Isso porque não havia qualquer estado de flagrância no momento em que a Guarda Municipal passou a perseguir o veículo com os conduzidos. E mais: pronunciou ordem de parada, sem, entretanto, ter competência para fazê-lo, atuando contra a lei e o disposto na CR.

O guarda municipal Rodrigo esclareceu:

(…) quando, por volta das 0h30min, perceberam a movimentação suspeita de um veículo Seat cordoba de cor cinza e placas …, na Avenida Mauro Ramos no centro da cidade, o qual ao perceber a presença da guarnição passou a realizar manobras bruscas e tentar se distanciar da viatura; que a guarnição passou a acompanhá-lo quando na Rua Silva Jardim foi solicitado ao condutor do referido veículo que encostasse na via; que o condutor, aparentemente estacionava o carro quando um objeto foi atirado para fora da janela do motorista e imediatamente o veículo arrancou bruscamente tentando se evadir do local; que neste instante a guarnição comunicou uma segunda viatura (VTR 106) que já os seguia para que recuperasse o objeto dispensado pelos ocupantes do veículo e iniciou a perseguição durante aproximadamente 500 metros até que o motorista decidiu finalmente foi forçado a parar [sic] (…)

Frise-se que o veículo conduzido por Carlos Eduardo de Souza passou em frente aos guardas municipais, os quais – aí desnuda-se a típica realização de atos de polícia militar – “julgaram” estarem os integrantes do veículo em “atitude suspeita”, passando a persegui-los. O próprio guarda municipal esclarece que, percebendo atitude suspeita, passou a seguir o veículo. Trata-se evidentemente de atividade típica da Polícia Militar – prevenção da ordem pública – dado que não havia qualquer estado de flagrância. Consequentemente, a ordem de parada foi ilegal.

No ponto, Thiago Augusto Vieira (Florianópolis, UFSC, 2010, p. 60) cita excerto da Apelação Criminal n. 1.270.983-9, de Santos, 4ª Turma, rel. Des. Marco Nahum, da lavra do Desembargador Eduardo Pereira Santos Júnior, do Tribunal de Justiça de São Paulo:

Na verdade, a questão foi invertida, pois não houve a prisão em flagrante e depois a busca pessoal com a apreensão da arma, mas, ao contrário, primeiro houve a revista pessoal e apreensão da arma e, posteriormente, a prisão em flagrante, inclusive porque nenhum dos guardas municipais perseguia o réu em razão da prática de ilícito, mas apenas “desconfiaram” do mesmo [sic] e em razão de tal desconfiança houve a busca pessoal com apreensão da arma na cintura daquele, que, então, gerou a prisão em flagrante do acusado por portar ilegalmente arma de fogo.

Dessa forma, patente que a própria prisão em flagrante estava nula, já que decorrente de diligência ilegal, qual seja, a busca pessoal no acusado por autoridade incompetente, inclusive porque a prova obtida por meio de revista pessoal realizada por guarda municipal é ilegítima, por ausência de autorização legal, contaminando tudo que dela derivou.

Mutatis mutandis, quando os guardas municipais avistaram o veículo com quatro integrantes, não havia qualquer delito flagrante. Apenas o fato de quatro homens estarem no interior do automóvel, em subjetiva “atitude suspeita”.

Ressalta-se que tal informação é por demais relevante, pois somente foi verificada a presença de delito quando os membros da Guarda Municipal passaram a agir como polícia ostensiva, visualizando veículo suspeito e não comunicando incontinenti a Polícia Militar. Ao contrário, os próprios agentes exerceram fiscalização e efetuaram a abordagem do veículo. Dito em outras palavras: os guardas municipais não viram qualquer crime em ação; somente quatro homens em um veículo, à 00h30min.

Portanto, não se diga que alguém “do povo”, ao ver passar veículo com indivíduos em atitude suspeita, pode persegui-lo e ordenar a parada do automóvel para fiscalização. O que os guardas municipais fizeram foi fiscalização preventiva. Na sequência, ante o ato de fiscalização, aí sim houve arma sendo dispensada. Depois se deu o flagrante, mas a atuação já era totalmente ilegal.

Cabe aqui mencionar a citação trazida por Thiago Augusto Vieira, na monografia acima já citada (Florianópolis, UFSC, 2010, p. 32):

A primeira condição de legalidade é a competência do agente. Não há, em direito administrativo, competência geral ou universal: a lei preceitua, em relação a cada função pública, a forma e o momento do exercício das atribuições do cargo. Não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito. A competência é, sempre, um elemento vinculado, objetivamente fixado pelo legislador.

Verificando a ilegalidade da atuação da Guarda Municipal em matéria de polícia ostensiva, o juízo da 7ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de São Paulo (Autos n. 0004088-31.2009.4.03.6181), absolveu o acusado por conta da atuação da Guarda Municipal.

É oportuna a citação de parte da sentença:

Neste ponto é que se deve fazer a ressalva relativa ao procedimento estatal adotado. É notório que depois de mais de 20 anos da chamada “Constituição Cidadã” em vigor, o Estado ainda não conseguiu, nem se esforça para tanto, dar cumprimento aos direitos fundamentais nela assegurados. Conforme relatado anteriormente, os fatos não ocorreram dentro de algum bem ou patrimônio pertencente ao Município de Cotia. A Guarda Civil não tem atribuições para realizar atos próprios da Polícia Militar, ou até mesmo da Polícia Civil. O artigo 144, 8.º, da carta política confere as guardas municipais unicamente poder de polícia atinente a proteção de seus bens, serviços e instalações. A Guarda Municipal não tem o poder de realizar buscas pessoais em quem quer que seja, ainda mais decorrentes de denúncia anônima noticiando a prática de eventual crime. A ação dos guardas civis não pode ser chancelada pelo Poder Judiciário. A prova produzida mediante ação abusiva do Estado deve ser, conforme manda a Constituição Federal, declarada ilícita, nos termos do artigo 5.º, inciso LVI, da Carta Magna. A apreensão das duas cédulas pelos guardas civis foi ilegal. Neste aspecto, ante a ilicitude da prova, e considerando a ausência de qualquer outra não contaminada por aquela, deve-se reconhecer a total ausência de provas contra o acusado, até porque, recaindo a ilicitude na própria prova material, a existência do crime pode ser completamente desconsiderada nestes autos. Ainda que assim não fosse, sendo ilícita a diligência realizada pela guarda civil, também o crime, no aspecto da autoria, resta indemonstrado. Por fim, deve-se assinalar que as questões alusivas ao erro de tipo e aplicação do princípio da insignificância ficam prejudicadas ante o reconhecimento da ilicitude da prova. É de rigor a absolvição, tendo em vista que, reconhecida a ilicitude da prova, não subsistem elementos de prova da existência do fato.

In casu, admitir prova obtida ilicitamente seria convalidar a atuação inconstitucional da Guarda Municipal de Florianópolis como polícia ostensiva. Trata-se, pois, de vício insanável, que atenta contra a Constituição da República, não obstante entendimentos contrários que olvidam o papel de guardião da lei exercido pelo Judiciário e pelo Ministério Público.

Revelada a atuação inconstitucional e ilegal da Guarda Municipal, que exerceu fiscalização (polícia ostensiva), nascedouro do flagrante que se lê integrando a denúncia ofertada, verifica-se a ilegalidade da materialidade de delito obtida através de tal atuação, a qual, não sendo de se obter por qualquer outro meio lícito, nas circunstâncias demonstradas, é desconsiderada como prova do crime, o que arrasta para o mesmo destino a autoria do delito.

Por tais razões, nos termos do artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal, REJEITO A DENÚNCIA de fls. II-VI, diante ausência de materialidade.

Expeçam-se os alvarás de soltura.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Transitada em julgado, remetam-se cópias integrais ao Ministério Público para apuração de eventual crime por parte dos guardas municipais.

Após, arquivem-se.

Florianópolis (SC), 11 de junho de 2012.

Alexandre Morais da Rosa

Juiz de Direito

Fonte: JUSTIFICANDO

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14 Comentários

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Só vi comentários amadores e carregados de informações equivocadas pelos "colunistas". Artigo superficial:
1- Minagé fala que o concurso para PM não cobra sequer o que é flagrante. Argumento falho. Todo edital de concursos para PM exigem conhecimentos em direito penal e processual penal.
2- MInagé ainda insiste, insinuando que o poder de polícia concedido à GM é que a permitiria usar armas de fogo. Balela! O estatuto do desarmamento (Lei 10.826) já permite para municípios capitais ou municípios com mais de 50.000 habitantes.
3- Khaled Jr reafirma a insinuação do Minagé, pois acha que a policialização da gM é que daria o porte de armas para a GM. Ela já pode ter!!! Khaled Jr ainda usa argumentos superficiais, generalizando a atuação policial, falando que é aceito no meio policial “atirar primeiro e perguntar depois”.
4- Khaled Jr continua com argumentos falaciosos e impensados, como sugerir que a polícia não utilizasse armas, como em alguns países. Ele deve se referir à inglaterra ou Japão, onde não há criminosos perigosos e armados como no Brasil, onde a taxa de homicídios é baixíssima, onde o IDH é altíssimo. Não estamos no 1º mundo, estamos no 3º. Policial, no Brasil, sem arma é igual a médico sem estetoscópio.
5- Demonstra-se no texto preocupação com a coexistência de 03 polícias: Civil, Militar e, agora, a Guarda Municipal. O autor esqueceu que temos 6 polícias! Temos a Federal, a Rodoviária Federal e a Ferroviária Federal (CF, art. 144). E todas atuam nos municípios, de acordo com suas atribuições.
6- No final do artigo, antes da citação da decisão judicial, o autor critica o poder de polícia dado às guardas municipais, falando que seria ilegal/inconstitucional. Em tal trecho o autor demonstra desconhecimento jurídico sobre o que seria "Poder de polícia". Poder de polícia não é o poder da PM, PC, PF. Poder de polícia é inerente à qualquer órgão de fiscalização do estado! “O Poder de Policia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas a Administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequando, direitos e liberdades individuais” (TÁCITO, 1975, apud MEIRELLES, 2002, p. 128). continuar lendo

Parabéns pelo seu comentário Bruno! Concordo com você em todos os seus argumentos. Sem tirar, nem por. continuar lendo

Excelente cometário.....informações precisas e coexistência de argumentos notórios e claros continuar lendo

Pois é. O problema é que a Constituição não outorgou aos Guardas Municipais nenhuma função inerente aos órgãos encarregados pela segurança pública. Sua função é de somente proteger os bens, serviços e instalações das prefeituras. Só isso. Não há nada que fale em apuração, prevenção, repressão, patrulhamento, preservação da ordem pública, ou coisa que o valha. Como bem disse esse mesmo Caio Tácito que você mencionou: “Não é competente quem quer, mas quem pode segundo a norma de Direito". Portanto, se esse projeto for sancionado com tais atribuições, estará incorrendo em flagrante vício de inconstitucionalidade. continuar lendo

Bruno Santos,
Muito bem observado...
O que haveria de ser feito com uma arma com numeração raspada e municiada?! Assaltos, estupros, sequestros-relâmpago, assassinato???
A supremacia do interesse público não prevalece nesses debates sobre sexo-dos-anjos. A Guarda Civil agiu como anjo-da-guarda da sociedade (prevenindo o crime se antecipando a ele), porém tem gente que prefere ficar tripudiando sobre a ostensividade ou não da Guarda Civil, pragmaticamente, o agente de segurança pública, uma vez fardado e armado (está ostensivo) e portanto, tem o dever de combater o crime da melhor forma possível, pois o que se tutela é a vida dos contribuintes deste Estado Democrático de Direito-dos-manos!!! continuar lendo

É por isto que o sistema não funciona. A justiça se atem a pormenores obscuros dos melindres da lei e rejeita flagrante e erroneamente o ato em si que está sendo julgado. Puna-se o infrator da lei e depois se necessário for, oriente-se o representante da lei em falta a agir com correção. Ignorar que houve o crime, e de fato houve, por causa de uma vírgula colocada em lugar errado é, a meu ver, o cumulo da mediocridade legal. Lamento profundamente que o meritíssimo juiz se tenha deixado levar por tecnicismos ao invés de servir à sociedade. Vale lembrar que quando a lei esta acima da segurança e do bem estar do cidadão, ela está errada e deve forçosamente ser reformada. continuar lendo

O sistema não funciona porque existem juízes que não julgam conforme a lei. O sistema não funciona porque existem representantes do poder público que acham não precisam cumprir a lei. Num sistema democrático o que prevalece é a lei e não a vontade casuísta das pessoas, sobretudo quando atuam em nome do Estado. Parabéns a esse juiz que sabe muito bem qual é o seu papel: fazer cumprir a lei e não agir como um fora da lei que acha que o fim justifica os meios. continuar lendo

Prezado articulista,
Sou Coronel da PM.
Estudo as GM desde que ingressei na PM. Comandei a GM de Santos-SP.
Sou Bel Ciências Jurídicas pela USP (lgo São Francisco).
Esse prólogo é apenas para dar suporte ao que vou dizer, sem falsa modéstia.
Ao concluir mestrado e doutorado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública e após anos de experiência em franco relacionamento com as GM, chego a algumas conclusões:
-a segurança primária, de competência municipal raramente é executada como deveria;
-compreende essa atividade a proteção do exercício da função pública municipal e, primordialmente, do cidadão que está no município, seja morador, passante ou esporádico. É ignorância proposital a alegação de que deve ser protegido o patrimônio municipal e não o cidadão;
- as posturas municipais referem-se ao uso dos equipamentos da cidade e dos seus serviços, sendo aí o princípio do controle social democrático pelo poder público para propiciar a tranquilidade pública e a salubridade dessas relações;
-contribui a atividade primária para impedir a progressão infracional, que poderia vir a desaguar no cometimento de infrações mais gravosas à sociedade, mormente infrações penais;
-as Gm tem apenas que receber o devido preparo para essas atividades, o que não ocorre em muitos municípios, por carência de uma doutrina de seu emprego.
- as normas orientativas da Senasp são desprovidas de base conceitual e de base técnico-profissional, procurando apenas enviesar ideologicamente o assunto, pois nada oferecem de apoio orçamentário para os municípios, sendo os recursos previstos, efetivamente fornecidos, de menos de 10% da previsão orçamentária, o que demonstra que não há interesse federal na resolução desses problemas;
-é imprescindível regulamentar o § 7º do artigo 144 da CF, o que ainda não é prioridade dos crongressistas, infelizmente.

OBRIGADO continuar lendo

O Artigo acima é superficial, precisa de mais argumentos jurídicos, pois apresenta somente um ponto de vista. continuar lendo